Em círculos judaicos é sempre recorrente uma abordagem negativa a respeito do cristianismo, as vezes tão honesta que beira à injustiça. Não há dúvidas, os judeus sofreram muitas agruras em nome de falsos seguidores de Cristo, ou em nome de um cristianismo oficial. Não há dúvidas que a Alemanha Nazista - por exemplo - era composta de mais de 50% de luteranos. Não há dúvidas que muito do discurso anti-semita medieval sustentava-se por "frases isoladas" ou mesmo explícitas de uma postura "anti-judaica" entre alguns Pais da Igreja.
Porém, reduzir o cristianismo a falsos-cristãos, seria tão incoerente quanto reduzir o judaísmo a falsos-judeus. O joio era previsto pelo próprio Jesus, e mesmo Paulo, o apóstolo, já alertava a Igreja de Roma a respeito de uma possível jactância da parcela gentílica da Igreja em relação aos judeus (Rm 11). Ainda sim, deve-se admitir que é parte da natureza do cristianismo a existência de falso-cristãos. Penso que no cristianismo há muitos "judas", como no judaísmo, deve haver muitos "Tsvi Shabatai", "Saduceus Aristocratas", fundamentalistas religiosos, que desqualificam a essência do judaísmo. Reduzir da mesma forma o judaísmo a estes "sujeitos" seria incoerente.
O termo cristianismo foi usado pela primeira vez no período pós-apostólico, no II século d.C. Inácio de Antioquia foi o responsável pelo uso inédito do termo (ao menos estes são os registros). Alguns críticos veem na criação de uma terminologia nova para identificar os seguidores de Jesus um problema. Neste sentido, supõe-se que a procura por uma identidade independente do judaísmo traria prejuízos à fé chamada "cristã". Mas, como veremos, este é um receio parcialmente compreensivo.
Não acho que Inácio tinha alguma pretensão conspiratória, penso que não havia outra opção. Desde o ano 95 d.C. quando os judeus se reuniram em Yavne (Jamnia) para um conselho que redefiniria o rumo do judaísmo pelos próximos séculos, fora elaborado mecanismos religiosos e litúrgicos para repelir a presença dos "nazarenos" (judeus crentes do I século) do círculo judaico. A rejeição inicial não foi da Igreja, foi do próprio judaísmo. Se a situação era difícil para estes primeiros judeus seguidores de Jesus, o que dirá aos gentios recém chegados do paganismo. Estes eram um grupo com grandes problemas identitários: por um lado não eram judeus (pois não se submetiam à conversão formal ao judaísmo) e nem eram pagãos (pois não frequentavam os cultos pagãos).
A sinagoga não queria mais os seguidores de Jesus, o mundo pagão também repelia os gentios seguidores de Jesus. A única saída foi a afirmação de uma identidade independente, tanto do mundo pagão como do mundo judaico. Ignácio, quando afirmou o aspecto "universal" (católico) da Igreja, queria deixar claro que a "Igreja" era uma instituição para além dos limites "étnicos". Enfim, quais foram as principais consequências da inauguração do cristianismo?
Consequências positivas: a expansão da fé cristã, que sem exagero (basta uma olhadela nos atuais estudos), seria um tipo de "judaísmo minimalista" para acolhimento dos gentios à fé em Jesus e ao monoteísmo derivado deste. Este judaísmo minimalista (cristianismo) dialogava bem com as culturas pagãs, principalmente em províncias e territórios onde a sinagoga já não estava presente (países nórdicos - por exemplo).
Consequências negativas: o distanciamento da matriz hebraica produziu gradualmente um perda da cosmovisão judaica; uma cristologia excessivamente preocupada com a transcendência, ofuscando a humanidade e a identidade cultural do verbo quando se fez carne. O diálogo com a cultura grega, por vezes foi promissora, por outras vezes, a síntese entre "cristianismo" e "cultura grega" trouxe grandes problemas para o seio do cristianismo.
Sendo assim, o cristianismo é um movimento legítimo, enquanto a resposta do Espírito Santo para um momento de tensão entre a Igreja e Sinagoga. A ruptura seria inevitável e necessária. Neste sentido, o cristianismo deve ser honrado e respeitado, como um fenômeno legítimo de acolhimento e reunião das nações ao redor do Messias judeu, Jesus.
Por outro lado, o cristianismo depara-se com uma tendência mundial, de visita e releitura de sua própria fé a partir das fontes judaicas. Vários escritos judeus, protestantes, católicos e reformados, dedicam-se ao estudo da língua hebraica, da tradição rabínica, dos Manuscritos do Mar Morto e outros recursos da tradição judaica, para compreender e enriquecer a própria experiência do cristianismo e por que não do próprio judaísmo?
Um outro fenômeno que não pode ser ignorado, é a crescente presença de judeus que percebem Jesus como uma figura messiânica. A presença crescente dos ditos "judeus-messiânicos " em Israel e na Diáspora é um fato, e deve ser considerado. Não faço referência a grupos fundamentalistas, judaizantes ou que procuram descredibilizar a tradição cristã e o próprio cristianismo. Neste sentido, uma leitura do Manifesto Judeu-Messiânico de David Stern traz boa luz doutrinária. Segundo ele o judeu-crente, por uma questão identitária, deve permanecer judeu, vinculado a sua tradição e neste sentido, o cristianismo não é adequado para ele. Um espaço autônomo, que proporcione liberdade litúrgica e que remeta os tempos pré-inaciano de culto, seria interessante. Mas, neste sentido, o debate é longo.
O que quero afirmar com este breve texto é que o cristianismo é um movimento historicamente estabelecido, levantado por crentes piedosos, que na tensão com o judaísmo, viram-se obrigados a criar um espaço de acolhimento dos gentios convertidos a fé cristã. Nem tudo que é cristão é necessariamente apostólico, como nem tudo que é judaico é necessariamente mosaico. Pois ambos, desenvolveram suas tradições, e como diz Alister McGrath , a melhor forma de lidar com a tradição é compreendê-la dinamicamente. Pois a tradição enriquece a fé ao afirmar experiências anteriores e é enriquecida com novos contextos e experiências teológicas. A tradição é relativa à revelação.
Não obstante, o cristianismo não está isento de algum tipo de crítica histórica ou religiosa, pois há elementos heterodoxos na diversificada tradição cristã que são incompatíveis com a fé apostólica, como por exemplo: as influências do tomismo aristotélico, o neo-platonismo, o antinomismo luterano, o legalismo pietista e por aí vai.
O cristianismo foi o grande precursor dos direitos humanos; em seu formato reformado promoveu o avanço das pesquisas científicas e da produção de riquezas. O cristianismo implantou universidades em toda Europa e nas Américas; as primeiras academias brasileiras eram confessionais. O cristianismo erradicou a confusão politeísta e expandiu um monoteísmo transformador em lugares assolados pelo caos teórico e por crenças perversas que oprimiam mulheres e escravos. O cristianismo conseguiu popularizar e cumprir em muitos lugares, como a experiência do neo-calvinismo holandês , um tipo de atuação antecipadora das profecias, os profetas judeus jubilariam se vissem o que Abraham Kuyper realizaria entre os séculos XIX-XX. O cristianismo criou comunidades modestas, fervorosas, pensantes, atuantes e inspiradoras como L'Abri na Suíça com a família Schaeffer . Não foi em vão que Calvino ao fazer teologia em suas Institutas, o fazia a partir das Escrituras Hebraicas (Antigo Testamento), mostrando uma unidade entre os "testamentos", evitando a heresia marcionista , que ainda aterrorizava outras tradições dentro do protestantismo e do cristianismo medieval.
Penso que é possível uma experiência cristã real dentro do cristianismo. Uma pessoa pode desfrutar perfeitamente de Deus através da modalidade cristã de fé, pois de fato o cristianismo se estabeleceu criativamente como um movimento com tradição e espiritualidade próprias, e que vive um momento de redescoberta de suas raízes em Jerusalém, mas em um movimento que passa por Calvino, Agostinho, os Pais Capadócios, Nincéia, os Bispos Judeus (citados por Eusébio), aos Apóstolos, ao Messias, aos profetas e à Torá (pentateuco), curando as cismas históricos com a ajuda da graça de Deus, em Cristo, que reconcilia judeus e gentios (Ef. 2) no madeiro.
Fonte: http://pensarigor.blogspot.com/2009/12/cristianismo-sim-algum-problema.html
Fonte: http://pensarigor.blogspot.com/2009/12/cristianismo-sim-algum-problema.html